Prosseguindo com um comentário para cada história de cada Volume da nova Coleção Histórica Marvel, que traz para o Brasil, pela primeira vez, as aventuras de Shang-Chi em ordem cronológica e em formato original americano, sem as famigeradas adaptações da Abril e de outras editoras. Leia e saiba mais sobre como o gênero das artes marciais era tratado pela Marvel naquele contexto histórico.
. Nível de Spoilers: de leves a moderados. São histórias antigas dos anos 70, mas não conto desfechos, tampouco revelações bombásticas.
Pelo que ouvimos de outras fontes, a Panini já garantiu que, além destes 4 primeiros volumes, outros 4 estão confirmados. Isso provavelmente vai cobrir todas as edições ilustradas por Paul Gulacy, o que é uma excelente notícia.
No geral, vamos ver se o próximo Volume da coleção vai melhorar o nível médio de histórias, porque este foi bastante irregular, como vocês verão a seguir.
1. Golpe de Mestre!
Roteiro: Len Wein / Desenhos: Ross Andru
Arte-Final: Al Milgrom / Cores: G. Wein
Edição original: Giant-Size Spider-Man #2 (out/1974)
Realmente, é louvável o trabalho da Panini com esta Coleção, porque está incluindo não somente as histórias solo de Shang-Chi, mas também suas participações especiais como “convidado” em HQs de outros personagens, na mesma sequência que saiu lá nos EUA.
Como era de se esperar, haveria um encontro com o Homem-Aranha logo, porque ambos os heróis atuavam em Nova York e combatiam o crime nas ruas. Além disso, o aracnídeo já era, desde o final dos anos 1960, o carro-chefe da editora e caminhava rapidamente para se transformar em um ícone mundial. Uma associação com o alter ego de Peter Parker seria, portanto, comercialmente interessante para qualquer novo personagem da Marvel ganhar visibilidade.
Com roteiro de Len Wein, um dos nomes mais importantes daquela década na “Casa das Ideias” – falecido recentemente; e arte de Ross Andru, um artista fortemente inspirado pelo trabalho de Gil Kane, “Golpe de Mestre!” é dividida em capítulos, como nas demais edições do tipo Giant-Size da época, e traz os heróis se estranhando em um primeiro momento e, depois de algumas situações, percebem que o melhor é unir forças contra os verdadeiros bandidos. Enfim, o modus operandi clássico de um team-up Marvel.
Vale a pena ressaltar que naquele momento da cronologia, o Homem-Aranha era considerado uma ameaça pela polícia e por boa parte da população, sofrendo uma violenta campanha negativa do Clarim Diário. Isso ajudava na construção da desconfiança mútua entre dois personagens que ainda não haviam se encontrado.
É uma aventura leve, onde o maior apelo é sem dúvida a união entre os heróis e, talvez, tenha sido relevante principalmente para Shang-Chi não só conhecer um combatente do crime superpoderoso, mas sobretudo por conquistar sua confiança.
No Volume #1, ele fez um team-up quase involuntário com o Homem-Coisa, que é o oposto em todos os sentidos do falastrão e jovem Aranha. A propósito, Parker deveria ter a mesma idade do Shang, entre 19 e 20 anos. A dupla voltaria a se encontrar em outras ocasiões (e em histórias bem melhores) ao longo das décadas seguintes como grandes aliados.
Novamente, o vilão escolhido é o Dr. Fu Manchu e há dezenas de guerreiros do Si-Fan – o exército de assassinos e devotos fanáticos de Manchu – no caminho dos heróis. A arte de Andru é simples, com alguns enquadramentos estranhos, que traz uma impressão de ter sido feita às pressas. Ah, não julgue (muito) as cores amarelas dos personagens orientais: era o padrão da época e ninguém parecia se importar.
Memorável é a reação do Homem-Aranha quando Shang-Chi revela o nome de seu pai, que era famoso na literatura americana popular (não dentro do Universo Marvel):
“Doutor Fu Man… QUEM? Ei, você está falando sério? Quer dizer… Fu Manchu é só um personagem de ficção… não é?”.
“Se ele é, Homem-Aranha, então eu também sou…”
Uma brincadeira metalinguística bacana!
No mais, mesmo sendo uma história absolutamente mediana e descartável, foi legal preencher mais um pequeno pedaço da cronologia do Universo Marvel com este histórico Team-Up.
Nota: 6,0.
2.Temporada de Vingança…
Roteiro: Doug Moench / Desenhos: Ron Wilson
Arte-Final: Al Milgrom / Cores: Stan Goldberg
Edição original: Master of Kung Fu #21 (out/1974)
Continuação direta de “Arma da Alma” (a penúltima HQ do Volume #1 desta Coleção) com o pretenso chefe do crime de Miami, Demmy Marston.
Ron Wilson era um desenhista bastante limitado, escalado pela Marvel em geral como fill-in, ou seja, uma espécie de reserva de um artista principal que não conseguiu produzir algo no prazo.
Ele entregava personagens quadrados, duros, com pouca expressividade facial e pouquíssimos detalhes de cenários, embora tivesse os bons fundamentos da narrativa em quadrinhos. Talvez seu maior momento na história da editora seria sua associação com um outro personagem: o Coisa.
Isso porque ele aprimoraria seu estilo “quadrado” e conseguiria ilustrar boas histórias de Ben Grimm, tanto nas edições que ele estrelou do título de parcerias Marvel Two-in-One, quanto na sua revista solo, escrita por John Byrne em meados dos anos 1980.
Voltando à história, Shang-Chi tinha acabado de enfrentar o samurai Korain e, por isso mesmo, ainda estava nos arredores de Miami. Intrigado com um parque aquático, decide invadi-lo à noite para entender melhor o seu “conceito”. Logo a ação começa.
Chi enfrenta mercenários armados – como eles descobriram que seu alvo estava justamente naquele parque aquático tão rapidamente é um grande furo do roteiro – mas, sem dúvida, a grande “atração” deste capítulo é o momento de sua luta submarina contra um tubarão! Claro que Doug Moench não iria perder esta chance, não? A luta é impagável, um belo exemplar do “impossível que diverte”, daqueles que só encontramos mesmo nos quadrinhos.
No mais, acontecem outras duas cenas marcantes: nosso herói é brutalmente espancado (torturado seria a palavra mais adequada) e há um plot twist bacaninha que permite um final inesperado.
Nota: 5,5.
3. Biscoito da Morte!
Roteiro: Doug Moench / Desenhos: Paul Gulacy
Arte-Final: Dan Adkins / Cores: Petra Goldberg
Edição original: Master of Kung Fu #22 (nov/1974)
Esta boa história começa em um restaurante chinês, novamente com nosso herói atuando em Nova York.
Paul Gulacy está de volta e capricha nos detalhes das cenas no aconchegante restaurante: nas roupas dos frequentadores, na maquiagem e no corte do cabelo das belas, elegantes mulheres, e nos objetos cuidadosamente pesquisados que preenchem todos os espaços dos quadros, criando um ambiente intimista e moderno.
A primeira página é linda, um belo exemplo de como a Marvel era capaz de entregar quadrinhos de super-heróis diferentes, fugindo do lugar-comum de maneira às vezes singela.
Como era de se esperar, Shang-Chi não terá a paz que almejava encontrar nesta pequena fração da sua China natal. As lutas coreografadas por Gulacy tem mesmo uma qualidade única, superior, retendo o olhar do leitor por mais do que um mero instante para cada gesto, cada postura, cada golpe aplicado e seu impacto.
Fu Manchu, Sir Denis e Black Jack Tarr novamente participam desta história de argumento simples, mas eficiente, muito bem desenhada, com cores atraentes, repleta de batalhas excelentes e uma surpresa final.
Nota: 7,5.
4. O Triunfo do Doutor do Mal
Roteiro: Doug Moench / Desenhos: Paul Gulacy
Arte-Final: Jack Abel / Cores: Petra Goldberg
Edição original: Giant-Size Master of Kung Fu #2 (dez/1974)
Nesta segunda edição “gigante” do personagem, Doug Moench e Paul Gulacy entregam um verdadeiro épico, com certeza o ponto alto deste Volume. Parece um bom filme de ação e espionagem de James Bond no auge da Guerra Fria, com heróis e vilões únicos, com papéis claramente bem definidos e marcantes.
Como nas outras edições especiais Giant-Size típicas da Marvel, a história é dividida em capítulos, o que amplifica a sensação de estarmos diante de uma saga, e não uma HQ comum.
Perambulando por NYC, Shang-Chi conhece uma bela mulher que, ao que parece, é dona de um Dojô. Descolada, convida nosso herói para jantar e os dois engatam uma boa conversa.
“Estou feliz em te conhecer Shang-Chi.”
“Prefiro estas últimas palavras, Sandy, pois elas refletem as palavras em minha mente… e, neste momento, minha mente se enche de magia.”
Sim senhor, são raros momentos de paz e romance para nosso incansável lutador.
Logo, porém, Chi é interrompido por Sir Denis Smith, que lhe confia mais uma missão secreta. É uma tarefa diferente, embora seja também um dos grandes clichês do gênero da espionagem: um cientista inimigo (chinês), quer mudar de lado e nosso bom herói deve resgatá-lo.
A caminho da China, muita ação a bordo do avião e, logo que chega nas ruas da capital de sua terra natal, mais batalhas contra outros artistas marciais. Gulacy aproveita a chance e esbanja técnicas de ponto de fuga na criação dos prédios e casas chinesas.
A história apresenta ainda uma sequência realmente inacreditável de combate nas ruas e becos desta grande cidade oriental. Além disso, o roteiro trará muitos outros desafios e algumas reviravoltas, um dos primeiros clássicos absolutos do personagem que, sem ter qualquer superpoder, demonstra uma capacidade impressionante de feitos impossíveis.
A esta altura muito mais seguro de sua arte, Gulacy encara o tour de force com splash pages inesperadas, criativas, além de uma quadrinização que remete muito ao trabalho de Jim Steranko com outra HQ de espionagem da Marvel, Nick Fury.
No geral, há uma fluidez entre roteiro e arte que a tornam uma história em quadrinhos com pegada moderna – difícil de acreditar que foi produzida há mais de 40 anos!
E, para consagrar, há em um detalhe do roteiro uma enorme crueldade com nosso jovem Shang-Chi. Sem dúvida, uma edição inesquecível.
Nota: 9,0.
5. Rio da Morte
Roteiro: Doug Moench / Desenhos: Al Milgrom
Arte-Final: Klaus Janson / Cores: L. Lessmann
Edição original: Master of Kung Fu #23 (dez/1974)
Opa, uma aventura na América do Sul!
Sir Denis e Black Jack levam Shang-Chi a um passeio pelo Rio Amazonas e arredores para investigar uma suposta parceria entre um nazista foragido e Fu Manchu.
Nesta HQ, talvez pela primeira vez na série, o preconceito contra asiáticos é tratado de forma contundente.
Wilhem Butcher é descrito como o oficial mais leal do 3º Reich. Vale lembrar que tal premissa é baseada em fatos históricos, porque no pós 2ª Guerra Mundial, muitos ex-oficiais, soldados e simpatizantes nazistas procuraram mesmo refúgio em países da América do Sul, como Brasil, Argentina e Chile.
Claro, a maioria queria só recomeçar a vida e escapar da prisão na Europa, e não organizar um exército para ações terroristas, mas isso também aconteceu, e na região amazônica! Confiram uma reportagem recente sobre isso aqui.
Uma das características desta série tem sido os confrontos de Chi contra animais poderosos. Já vimos um gorila, um tubarão, alguns leopardos e agora, finalmente, um jacaré – aqui erroneamente chamado (ou traduzido) de crocodilo.
Al Milgron é agora o desenhista, após vários meses cuidando da arte-final, e faz um trabalho melhor que Ron Wilson, especialmente com sua cuidadosa montagem das lutas, mas ainda bem inferior ao incrível Paul Gulacy. Em um momento ele produz uma splash page dupla com resultados insatisfatórios: não somente na composição sem graça, mas alguns desenhos foram feitos muito pequenos que, ao serem ampliados, ficaram com uma qualidade grosseira do traço.
História com um plot twist bizarro, que deixa aparentemente sem sentido uma série de fatos. Ainda assim é curiosa, vamos ver a conclusão na próxima edição.
Nota: 6,0.
6. Massacre na Amazônia!
Roteiro: Doug Moench / Desenhos: Al Milgron, Jim Starlin, Alan Weiss, Walt Simonson
Arte-Final: Sal Trapani / Cores: P. Goldberg
Edição original: Master of Kung Fu #24 (jan/1975)
Nesta segunda parte da aventura contra nazistas na Amazônia, os créditos da arte ficam a cargo de 4 desenhistas diferentes, certamente convocados para concluir o trabalho a tempo.
O fato curioso é que, além de Al Milgron, os demais virariam grandes estrelas dos quadrinhos nas décadas seguintes, como Alain Weiss e Walt Simonson, além do próprio criador do personagem, Jim Starlin, que retorna meio sem-querer ao título. Coisas da produção industrial e um mercado totalmente dependente da distribuição para bancas de jornais e lojas de conveniência dos anos 1970, onde a revista tinha que ser finalizada de qualquer jeito.
O resultado é exatamente o que se esperaria, isto é, irregular, abaixo da média do padrão deste título.
A história é, essencialmente, o detalhamento da batalha cuja montagem foi orquestrada no capítulo anterior, entres os exércitos do nazista Wilhem Butcher, e os Si-Fan de Fu Manchu.
Embora tenha bons momentos, uma breve análise da trama confirma a suspeita que o plot é, simplesmente, estapafúrdio!
Basicamente, um grupo atraiu o outro para um confronto arriscado nos confins da selva com grandes chances de se dizimarem… sendo que os nazistas tinham um ás na manga que dispensaria completamente a aliança com Fu Manchu! E porque Sir Denis é convidado ao esconderijo pelo próprio Butcher?
Outra coisa que incomoda, aí analisando não somente estas duas partes mas sim o grande arco da série até o momento, é como Black Jack e, sobretudo, Sir Denis, parecem incompetentes e quase completamente descartáveis.
Está certo que é a estrela da revista, mas Chi é muito mais capaz que a dupla, mesmo sendo bem mais jovem e sabendo pouco sobre os planos, os locais e adversários e resolvendo tudo no improviso. Está na hora de ver os britânicos serem minimamente eficientes, pessoal!
Nota: 4,5.
7. Rituais de Coragem, Punhos da Morte!
Roteiro: Doug Moench / Desenhos: Paul Gulacy
Arte-Final: Sal Trapani / Cores: Bill Mantlo
Edição original: Master of Kung Fu #25 (fev/1975)
Gulacy retoma na última história deste segundo Volume. Nosso trio de heróis continua na Amazônia mas aqui temos uma aventura à parte, até com um argumento diretamente ligado à guerra travada anteriormente, mas é de fato uma história solo de Shang-Chi, que se vê envolvido com uma tribo de índios hostis chamada Jivaro.
História rápida, com uma trama simples, é onde acontece a “famosa” cena do Chi mordendo – e quebrando com os dentes! – uma espada.
Em defesa do argumentista, digamos que não fica claro como a tal espada foi parar ali, já que os Jivaro parecem ser uma tribo bem primitiva, incapaz de produzir uma espada como aquela – talvez estivesse na tribo há anos, colhida de um inimigo branco e já deteriorada e enferrujada pela ação do tempo e da natureza?
É engraçado analisar a capa: para o desenhista (acho que ali foi o Al Milgron), eles eram tão primitivos que usavam… tacapes? Espera um pouco, eram neandertais ou índios amazônicos? E porque eles são brancos se Chi é pintado de amarelo?
Particularmente tais fatos não chegam a me incomodar por conta do contexto histórico, mas não há nada de marcante mesmo nesta edição, com os índios sendo tratados de forma bastante superficial e clichê, embora tenha um final razoavelmente interessante.
Ah, sim, vamos incluir na lista de animais derrotados pelo Mestre do Kung Fu uma bela onça-pintada!
Nota: 6,0.