Olá pessoal, tudo bem?
Por incrível que pareça, esta é minha primeira indicação de Mangá no Blog, que coisa!
Se eu conseguisse vir aqui mais vezes por mês certamente já teria falado sobre este e outros mangás deliciosos. Mas o tempo está curto mesmo, o que é uma pena porque eu gosto muito de falar, de escrever e de discutir quadrinhos de todos os tipos.
Mas, vamos ao que interessa.
No começo dos Anos 80 mangá não fazia parte do mix de leituras disponíveis nas bancas e, por isso, sou de uma geração de leitores de quadrinhos que passou a infância e a adolescência sem contato com o estilo.
Precisei de um certo tempo, com algum esforço, para começar a curtir. Hoje em dia está incorporado: sempre tenho um ou dois à disposição na pilha. Não virei um leitor compulsivo de mangás, como sou com quadrinhos de heróis por exemplo, e tem muito mangá que experimento e deixo pra lá, mas pelo menos compreendo melhor a proposta e “como funciona”.
Esta nossa terceira indicação da série Leituras para a Quarentena partiu de uma decisão prosaica: ano passado, vi a capa do número #01 de Caçando Dragões na banca e fiquei encantado com os traços delicados, mas super detalhados, e o belíssimo colorido. O tema me deixou curioso mas, antes que recorresse ao smartphone para fazer uma rápida pesquisa, decidi comprar.
Sim, foi pela capa, sem ter lido uma única resenha ou um mínimo comentário em outros sites, nem no Instagram, nem no YouTube… enfim, foi um “tiro no escuro” mas, ainda bem, acertei no alvo!
Gostei bastante da primeira edição e mais ainda das seguintes. Estou acompanhando com prazer o trabalho de Taku Kuwabara. É uma proposta razoavelmente complexa, mais que aparenta no início e, puxa vida, que arte linda!
Caçando Dragões – Kuutei Dragons no original – é uma leitura fluida, com diálogos bem cuidados, narrativa prazerosa e personagens interessantes. É uma obra recente, que ainda está em andamento no Japão e, por aqui, já saíram 5 volumes pela Panini Comics. Essa é outra razão para indicar a leitura: para quem se interessar, é possível encontrar todos os números nas comics shops e livrarias.
A proposta do mangá é intrigante, criativa e até ousada – o que gerou, quase que inevitavelmente, uma certa polêmica.
Aqui, acompanhamos a tripulação do Quin Zaza, uma espécie de barco voador, tipo um dirigível, em sua busca pelos dragões de um mundo fantástico. A missão desse navio é caçar implacavelmente dragões para vender sua carne. É, portanto, um empreendimento que vive do abate desses animais voadores fabulosos.
O autor dá muita importância à “vida a bordo” da aeronave, onde caçadores, cozinheiros, navegadores, pilotos e jovens aprendizes percorrem os céus de um planeta Terra muito semelhante ao nosso, mas ambientado em uma época não específica, equivalente ao final do século XIX talvez?, mas certamente antes das últimas revoluções tecnológicas.
Sem dúvida, é uma leitura indicada para quem gosta de uma fantasia leve, sem superpoderes, onde uma das grandes curtições é descobrir, aos poucos, “como funciona” esta Terra, cuja sociedade foi extremamente impactada pela presença desses seres colossais, quase mágicos e pouco compreendidos.
Há dragões de formas e tamanhos muito diferentes e completamente inesperados. É uma abordagem criativa do mangaká. Afinal, o mais óbvio seria povoar o mundo com dragões ferozes, devoradores de humanos (como os das histórias tradicionais), ou então com malignos cuspidores de fogo, astutos, falantes e apreciadores de ouro (como Smaug, de O Hobbit). Na prática, estes dragões são parte da fauna local e funcionam do mesmo modo que qualquer outro filo animal: não são “maus” nem “bons” – apenas vivem em seu ecossistema, co-habitando com os pássaros.
Taku Kuwabara trabalha muito bem o world building, revelando suas características pouco a pouco, desde pequenos detalhes da rica culinária, até a enorme variedade de tipos de dragões; e distingue também uma cidade das outras, é cuidadoso com ocupações e profissões diversificadas dos habitantes, e gasta tempo ainda com a tecnologia, ferramentas, roupas e acessórios, tudo com um quê de steampunk.
Desde a capa, é impressionante seu lápis, sempre detalhista, tanto nas grandes paisagens como no interior da nave, das casas, no design intrigante dos dragões (alguns deles se parecem com moluscos, outros com um misto de peixe e baleias, outros são monstruosos mesmo!) e é ótimo na expressividade dos personagens e na narrativa. Lembra bastante o traço do Hayao Miyazaki. A propósito, os temas trabalhados – como o embate entre civilização e natureza, selvageria e bondade -, também coincidem com os do mestre da animação mundial.
Em suma, este é, sem dúvida, um dos mangás mais bonitos que já vi!
Outra qualidade deste quadrinho é que a história não foca em um único personagem; há um balanceamento entre os vários membros da tripulação e, conforme as edições avançam, ficamos sabendo mais das razões para cada um se alistar no Quin Zaza.
Uma das mais jovens, por exemplo, Takita, é uma aprendiz, e ganha bastante espaço na edição #3 – minha favorita até agora – onde sem querer acaba se afeiçoando a um bebê dragão, que a conduz a uma experiência desconcertante.
Outros dois personagens em destaque são os caçadores veteranos Mika e Vanney. Ele, fascinado pela gastronomia em torno da carne de dragão; e ela, misteriosa e durona, ganha relevância a partir da edição #4, outro capítulo excelente, com mais ação e discussões sobre o papel desses animais.
Caçando Dragões é uma ótima HQ de aventura sim, mas é também uma alegoria à cultura da Caça às Baleias que, embora hoje nos pareça cruel e sem sentido, foi muito importante para grande parte do povo japonês, mas não só. Noruega, EUA, Portugal, Islândia, Espanha, Inglaterra… em determinados períodos históricos, especialmente entre 1700 e meados do século passado, a caça às baleias movia multidões e uma ampla economia em dezenas de países, inclusive em trechos do nosso litoral nordestino.
Felizmente, hoje a prática está quase completamente eliminada, e o consumo cai ano após ano. Por pouco as baleias não foram extintas e agora estão em processo de recuperação lenta e gradual.
Na verdade, os dragões do mangá “funcionam” de modo semelhante às nossas baleias no passado recente: são iguarias e fonte de energia, couro, ferramentas, abrigo, e cuja carne poderia alimentar vilas inteiras por meses.
A polêmica citada é que o autor parece “promover” ou, mais comum de ver entre youtubers brasileiros, usa o mangá para criar uma certa “romantização” da indústria baleeira. As receitas com carne de dragão que marcam a passagem entre os capítulos seriam um exemplo concreto disso. Em outras palavras, a HQ tentaria transformar esse crime ecológico em algo menor, mais “bonito” do que deveria.
Embora seja um argumento compreensível isto é, afinal, uma obra de ficção: uma fantasia sobre um mundo alternativo onde dragões (e não baleias!) são animais desejados, mas ainda incompreendidos e temidos, que podem destruir vilarejos em surtos inexplicáveis.
Pessoalmente, acho pueril “deixar de ler” por causa disso. Por um lado, a obra ainda está incompleta e, por retratar um ambiente no passado, com ampla ignorância da população sobre esses seres, pode trazer reflexões ecológicas importantes para seus personagens (e leitores). Aliás, é bom ver dragões serem abordados como animais porque traz empatia – vi vários relatos de gente que “sentiu pena” do abate dos bichos, algo que eu também senti várias vezes.
Ou seja, o autor conseguiu trazer esse sentimento (o que não é fácil) e não parece algo sem propósito, gratuito. Sendo intencional, portanto, não é uma virtude do quadrinho? Por analogia, não nos faz sentir pena também das baleias? E as receitas com “carne de dragão” imediatamente nos fazem refletir: para fazer aqueles pratos poderia ser a carne de qualquer animal, não?
Indo além: por outro lado, O Poderoso Chefão “romantizou” a máfia e nem por isso seus fãs “apoiam criminosos”, correto? Há centenas de histórias em quadrinhos que “romantizam” vigilantismo, milícias, guerras, ditadores… e nem por isso o leitor que gosta dessas obras estaria apoiando tais práticas na “vida real”. Ou seja, é possível, e até fácil, separar as coisas. Sou totalmente contra a caça de animais silvestres, mas posso curtir esta leitura ficcional!
Enfim, Caçando Dragões é um mangá que cutuca, traz sentimentos diversos, é lindo, é intrigante, e é gostoso acompanhar o dia a dia dos personagens e desvendar este mundo e suas criaturas – todas elas!
Em todo caso, recomendo a leitura tanto pelas qualidades do quadrinho em si, como também pela abordagem diferenciada e humanizada. Afinal, aqui não há superseres capazes de devastar planetas. São homens e mulheres simples, com grandes habilidades sim, mas cheios de falhas, com seus dramas, paixões e segredos.
Ah, o anime patrocinado pela Netflix entrou em exibição em 2020 no Japão, e vou ficar na torcida para sair também no Brasil.